sábado, 18 de outubro de 2014

Domados


         A minha cidade anda peculiar de uns tempos para cá. Não sei dizer ao certo, mas vejo inúmeras pessoas por aí passeando com animais de estimação. É o fenômeno do primeiro pet que se alastra pelos quatro cantos dessa mistura de arquipélago com continente que é a capital. Um leque de opções está aberto pelas ruas, onde vemos desde espécies de pequeno porte como hamsters no conforto de suas gaiolas até os de elevado tamanho com alguns cachorros. Só que me surpreende saber que uma tipologia desses últimos citados está com seus índices nas alturas.
Quem disse que o cão é o melhor amigo do homem está mais do que equivocado, pois nesse caso é da mulher. Seres que se encaixam nessa classificação possuem uma tendência de ciclo de vida rigorosamente seguida. Quando nasce, o tal está inserido em um cenário amoroso que perpetuará até que ocorra a fuga da redoma de vidro protetora. Há casos em a bolha que o envolve fica instável e explode por motivos banais. Em ambos os casos as criaturas se apresentam fragilizadas, mas logo conseguem se reerguer.
Sem as amarras da vida, seu crescimento é desenfreado, totalmente liberto das preocupações cotidianas. “O que vier é lucro” é o lema que mais se encaixa com o período. Revirar as latas de lixo não é um problema, pois um garimpo para tais não faz mal a ninguém. Há quem esteja de olho nas carnes rodando nos espetos das padarias e churrascarias. Alguns se arriscam com artimanhas, outros esperam que suas caras de tristeza convençam um funcionário a dar um empurrãozinho. Quem se lambuza primeiro de tanta comida é visto como um vencedor.
Todavia, o auge da vida dessa espécie já não tão rara assim traz sinais mais distintos que o comum. A sensação de solidão era consequência do cansaço da vida desregrada. É nesse momento que um alimento vai ser escolhido sem pretensões, somente para preencher o vazio de algum modo. Sem certo cuidado, o pedaço de carne se torna de grande apego e o transforma em semelhante. A essência animalesca igualada exala uma atração descontrolada. Há a perda da razão, e o apelo para um subjetivo muito mascarado. Seria então um preparo de terreno para mais uma evolução desse antigo alimento: a mulher.
Voltar a um lar aconchegante em que a dona molde conforme suas necessidades se torna não mais um empecilho para cada criatura nessa situação. Eis o início de uma plantação de ideias, opiniões e decisões a serem tomadas em cima de seu crânio. Enraizadas, essa união daria frutos que só podem ser tratados e colhidos com quem lhe pertence. Surge então o instante no qual a coleira com registro é finalmente colocada. Ato simbólico de um pertencimento planejado minuciosamente.
A ilusão toma conta rapidamente como uma doença de altos riscos. O mundo antes desbravado pelo bichinho tem suas portas fechadas, lacradas. Os horários de passeio, além de disponibilidade eram traçados e retraçados muitas vezes pela dona de cada um. Em contato com eles, essas se portavam como grandes salvadoras de suas vidas. Ao saírem do recinto onde estavam, todas recriavam um show de horrores em uma edição especial de insultos e depreciações. As múltiplas facetas são tão eficientes que proporcionam o poder de manipulação. A partir desse momento começa uma dura caminhada para o abismo. A torcida é pelo despertar mais breve possível antes que um desastre ocorra: a morte do eu.

Os devaneios dessa mente parecem tão irreais, mas infelizmente são concretos. São casais sendo criados por todos os lados seguindo o mesmo modelo que suga sempre a energia do outro sem ao menos notar. Não que um personagem tenha uma capacidade maior que a outra. Ambos são iguais nesses e em tantos outros quesitos. Talvez comparar ao animal possa não ter sido uma das melhores escolhas, porém captura muito bem o racional sendo deixado de lado e a pessoa se inserindo em atitudes primitivas perante situações extremas. E mesmo com tantos alertas, a grande maioria passa por todos os estágios e só no tardar deles descobre a realidade. Visto os que não preferem adquirir esse conhecimento, apenas inicio a playlist com  Doghouse do No Doubt. Escolha perfeita para lembrar os que já estão em péssimos lençóis.