quinta-feira, 23 de abril de 2015

Anomalias e selvageria

            Cai em um ninho de cobras e não hesito em falar na estranha experiência. Nadei diariamente no veneno que despejam com mais intensidade que a água numa cachoeira. Mas se engana quem acredita que eram apenas peçonhentas comuns. Uma mutação fez uma delas cega e a outra, com fortes pés para pisotear. Quem contestasse alguma delas em qualquer aspecto seria dizimado com esses artifícios infalíveis.

            Não enxergando a realidade além do que deduzia por escutar os ruídos, o bote equivocado da primeira era inevitável. E quando notava tardiamente a arte que fizera, logo regurgitava a vítima com desespero, porém ela já se encontrava morta. Mesmo tendo visão perfeita, a outra era bem mais deficiente na hora de encarar a realidade, afinal só conseguia ser palpável aquilo que lhe fortalecia e a obedecia. Seu momento com a presa era bem mais lento, entretanto muito mais doloroso. Agarrava o ser indefeso, lambia com sua língua bifurcada como se fosse sua cria e esboçava um falso sorriso. Eis o momento em que os pés calejados e inesperados tomavam a postura oculta pelos seus atos em pele de cordeiro. Erguiam-se bem alto e, antes que pudesse perceber a vítima já estava no chão um pouco deformada. A dança era repetitiva até sobrar quase nada, nem mesmo a sua essência. O barulho era alto e me ensurdecia. Algo enlouquecedor.

            E naquela brincadeira com o corpo, notei que o animal lutava para viver. Não adiantava o deboche posterior da víbora que o surpreendia com mais um arrastar de língua em sua carcaça. O ser não queria ser vítima, mas sim guerreiro. A batalha em que travava era para trazer a tona tudo aquilo que acreditava e tentar ensinar a decência a predadora. Só que ela sempre se portava como desentendida, mesmo que fosse mais inteligente que a média de sua espécie. A primeira se posicionou e tentou intervir, todavia era em vão. Desconhecia o que diziam em sua comunicação primitiva, só que me arrisco a supor o óbvio da fala da carniceira: “Necessito de sua morte para me tornar feliz, então isso não será possível”. Desossada, a presa caiu no chão após ser cuspida. Já não tinha mais aquele brilho no olhar.