domingo, 27 de março de 2011

Descrição, análise e contradição

Como já se dizia, uma imagem pode valer mais que mil palavras. Mas talvez duas palavras, uma em cima da outra, possam transmitir uma idéia resgatada de uma mentalidade que só podia ser observada em pessoas de certa época. A descoberta foi ao acaso, enquanto observava as novidades artísticas dos meus colegas de DeviantART, um site que sinceramente me proporcionou uma certa felicidade com a possibilidade de expor minhas fotografias. Eis que surge em fundo preto um jogo de palavras que deu um tanto quanto certo. Não várias palavras, mas somente duas. Não estavam unidas, mas uma em cima da outra.

O “você”, escrito em inglês, carregava importância na imagem que chegava aos meus olhos. As letras da palavra estavam em enorme tamanho e eram sustentadas por uma barra que firmava o pensamento do “eu” que se encontrava embaixo. Com braços de ferro, o “eu” sustentava toda aquela grandiosidade do “você” que, lá em cima, aparentava completa tranquilidade. Foi no momento de analisar a imagem que recordei das minhas aulas de Literatura do Ensino Médio. Lembrei do tão perverso Gregório de Matos que, ao falar sobre suas musas de pele branca como a neve, colocava-as em um pedestal. Lembrei de Marília, a musa de Dirceu, que estava em um pedestal do início ao fim da obra. Lembrei então que naquela época tudo era diferente e, mesmo que as mulheres fossem submissas a figura patriarcal, não queria dizer que os homens não seriam submissos a elas quando verdadeiramente apaixonados.

Reconheci no criador da tal arte um amor incontestável por uma menina que aparentemente era sua namorada, algo difícil de ver. Aquele menosprezar do “eu” para sempre focar em “você” parecia ao mesmo tempo tão arcaico, tão encantador, tão exagerado. E aquele exagero todo me fez recordar o exagero das pinturas barrocas. Tão teatrais, tão dramáticas. Artifícios para reconquistar fiéis levados pela Reforma Protestante. Mas quem disse que deram certo? Do mesmo modo, quem garante que colocar uma pessoa amada em um pedestal maior que você vai lhe trazer algo de bom?

Amor próprio. Duas palavras que separadas podem machucar, afastar, nocautear. Duas palavras que juntas podem fazer a diferença. Todos nós temos que ter amor próprio. Quem não tem amor próprio sofre ao amar incondicionalmente um ser que, mesmo em grande pedestal sustentado pela pessoa que ama, pode pular para provocar sua queda. Quem tem amor próprio tem o “eu” do tamanho do “você”. Quem tem amor próprio é forte. Forte para suportar a vida.


domingo, 6 de março de 2011

Questão de indecisão

A vida parecia sussurrar seus nomes por aí. Pelas esquinas, uma voz que ecoava até no pensamento. E a aquela já mente embalada com reflexões em torno de certo filme carregou o peso de reflexões passadas que resolveram voltar daquele passeio que parecia não ter fim. O tempo parecia depressa demais para ela. Nem ao menos seus sentimentos acompanharam mudanças. E estas, tão necessárias, se mostraram muito longe de sair do papel. Firmou os pés naquele All Star surrado de longas datas, respirou um pouco o ar da agitada cidade e foi rumo à praia.

Os barcos encalhados na praia estavam a compor a paisagem, mas a escuridão da fina areia da praia escondia a beleza. Com a brisa gelada, o zíper subiu. As meias, que podiam estar a proteger também, se abrigaram no par de tênis. O frio a aproximava do mar, que logo foi tocado pela ponta de seu pé pequeno e frágil. Abriu a lata de cerveja, sentou na pedra e começou a olhar para a imensa lua cheia e as estrelas. O céu estava em festa como o resto do país. Era Carnaval, mas naquela pequena cidade, todo dia parecia Quarta-Feira de Cinzas. As portas do imenso mercado já fechavam as portas quando a sujeita viajava pela mente e pelo espetáculo que a noite estava a lhe proporcionar. Por algum tempo, esqueceu do que gostaria de pensar e resolveu pensar na beleza das pequenas cenas, na lata de cerveja que já acabava sem suas mãos, no futuro que a aguardava. O último gole na cerveja, um coçar de olho, um barulho anormal para o silêncio da cidade que adormecia. Os passos lentos de um senhor que se aproximava colocaram seu coração a mil. Quis se esconder, mas já era tarde. O misterioso sujeito carregava um saco meio incompleto dos artefatos que buscava pelas ruas. Catou uma lata por perto e resolveu sentar ao seu lado.

- Por que teme minha pessoa se nada fiz a você?

Não tinha palavras, se sentia envergonhada por conta da situação. O maltrapilho senhor pediu a lata com um gesto e, observado a lata e a amassando, olhou para a ruiva jovem.

- O que traz você a essas bandas?

- Indecisão.

- Só isso?

Olhou assustada ao ouvir as tais palavras. O sofrimento era grande dentro dela, até demais.

- Como ousa?!

O velho riu com seus dentes tortos e amarelados. Colocou a lata no saco e fechou. Tirou do bolso o rádio desligado e apontou para ela.

- Sabe o que é isso? Não é um simples rádio. Foi a única coisa de valor material que sobrou na minha vida. Quando a solidão bate, ligo e ouço qualquer coisa. Dependendo da música, eu canto. Como já se dizia antigamente, quem canta seus males espanta. Posso ser um fracassado, mas pelo menos escolhi um meio de me tornar feliz. Independente do que seja essa indecisão na sua vida, não faça dela uma barreira, mas um leque de oportunidades. Busque a felicidade sempre! Não deixe de viver, arrisque pelo menos uma coisa que seja. Se for para ser será, senão, não era pra ser. Não era para eu ser rico, nem de classe média, mas cá estou a catar latinhas que pouco tem valor só para arranjar o que comer. E você a reclamar de um momento de indecisão. Ah, jovem é assim mesmo: já começa a desistir de cara. – Ele bateu nos ombros da jovem, segurou o saco de latinhas e deu um passo rumo a calçada. – Pense bem nos rumos, nos meios. Seja feliz sendo honesta sempre, mostrando seus sentimentos. Espero que tenha entendido esse velho.

Por mais alguns minutos permaneceu por ali. O senhor, que havia saído com um sorriso no rosto, ligou seu radinho e começou a ouvir velhos sambas. Quando se viu em uma cidade deserta, resolveu tirar do bolso o celular. Olhou a tela, sorriu, ligou. Naquela madrugada não dormiu. O pôr-do-sol foi espetáculo. Sua indecisão foi embora com a lua. Sentia-se leve, sentia-se feliz. A música começou a tocar de novo.