domingo, 20 de fevereiro de 2011

Jogo da vida

Ela sempre quis dançar como a Beyoncé Knowles. Arriscava passos na frente do espelho enquanto se despia rumo ao banho. Chutava as peças de roupa no ar quando tocava “Just a Girl” na rádio famosa da cidade. Ligava o chuveiro e era Morcheeba cantando “Rome Wasn’t Built In A Day”. As melodias do chuveiro, de sua voz e do aparelho de som ligado no máximo envolviam sua mente e a levava a qualquer lugar longe dali. Era uma sensação de liberdade dos problemas do cotidiano. Àquelas horas em pé no ponto esperando o ônibus em que o calor torrava sua cabeça e piorava a enxaqueca iam ralo abaixo junto das papeladas para assinar que chegavam aos montes em sua mesa. A vida de secretária não era moleza.

Era uma especialista nata em música. Estava por dentro das novidades das rádios e da internet. Buscava novidades na rede, mas não deixava de lado suas raízes e seu amor pelo pop e por músicas calmas com letras profundas. Mas não era só a música que a agradava. A imensa prateleira com inúmeros sucessos pintavam a paisagem de seu quarto de trabalho e estudos. Desde o sucesso “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto, até o encantador “Don Juan” do famoso Lord Byron. Folheava os livros como se estivesse apreciando um belo filé mignon feito por sua avó, uma receita de família que ainda era mantido em segredo o modo de amaciar. A cada ida aos inúmeros shoppings, a parada na livraria era obrigatória. Os seus olhos enlouqueciam ao se depararem com novidades, sucessos, coisas desconhecidas e curiosas. Os antigos CDs, vendidos a preço de banana, enchiam o pequeno cesto. Era uma compra do mês, o suficiente para satisfazer por mais uns dias sua felicidade, seu apetite pelo saber, pela cultura.

Mas a alegria que parecia duradora porém era passageira. Deixava seu amor trancado junto dos mosquitos que entraram na casa na noite passada. Tinha de sustentar aquilo tudo abdicando do ócio prazeroso por um tédio profundo e mortal em um pequeno escritório da capital. Era uma rotina maldita que aguardava seu fim toda noite de sexta-feira. Ao se ver inserida em seu período favorito, não fazia como a maioria das pessoas. Substituía um chopp gelado por um chá de camomila e amigos por algum livro jogado em cima da mesa, ou simplesmente um DVD de algum cantor ou banda. E eis que um desses dias de puro ócio surge uma notícia. Aquela maravilhosa sensação parecia um doce e marcante perfume que invadia todos os cômodos com uma velocidade incrível. O chinelo foi jogado para o ar, junto das cartas. Era uma oportunidade única de se reinventar.

Era uma segunda-feira normal. O cabelo embaraçado e armado, o café da manhã sendo preparado em segundos, a corrida para achar as chaves do armário, a aflição para encontrar a roupa perfeita, a maquiagem suave, o óculos de armação negra na face. Estava pronta, apesar de sua inexperiência que a fazia tremer as mãos de nervoso. Mesmo assim, o mundo parecia conspirar ao seu favor. O ônibus chegando no horário certo, pessoas dando informações corretas sobre o local, a água de coco gelada e doce, tudo fez questão de acalmá-la. Uns passos depois, um enorme e indiscreto prédio em seu alcance. Respirou fundo. Segurou o caderno contra o peito. Atravessou a rua. No meio do trajeto, paralisou. Por um segundo pensou se aquele passo poderia levá-la a um degrau maior, a uma altura maior. Por outro segundo, pensou que estava insana, iludida por um sonho qualquer. Estava na frente do jornal que acompanhava todas as manhãs seu trajeto rumo a vida quadrada do escritório, com um caderno cheio de produções em mãos. Era certo se arriscar, ou era certo voltar tudo de novo?

Quando se deu conta, o sinal havia aberto. Os carros corriam em sua direção. Foi automática a sua decisão. Pisou firme e pensou em não se arrepender. Algumas horas depois, pisos apressados romperam o silêncio do imenso edifício. Uma gota de água pura e salgada caiu e foi logo esmagada por outro sapato veloz. Ela ajeitou os óculos no rosto e foi em direção à agitada avenida. Fez um sinal ao homem do outro lado da rua e ele veio apressado em seu carro. Aquela jovem de vida tediosa, por um momento, estampava na face um sorriso que não havia sido visto por ninguém, só pelos atendentes da livraria. Respirou o ar poluído e sorriu como nunca. Sentou no banco de trás e fechou a porta com a maior pressa do mundo. Tocou seus escritos e sorriu novamente. Tudo sobre seus amores e terrores estamparia uma parte do tão adorado jornal. Aquela sensação de felicidade seria compartilhada com os leitores ao longo dos finais de semana, como era de seu costume. O primeiro pagamento em mãos, o luxo de pegar um táxi. Quem diria que aquele segundo trabalho que traria prestígio futuramente foi graças a uma fuga do cotidiano? Quem diria que aquela carta foi graças a publicação de seus trabalhos, da divulgação, da persistência. No jogo da vida, basta jogar os dados. Torça para que a sorte também te acompanhe.