quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Escudo literário

Ouvi falar de ventos, ventos fortes, chuva, granizo. O assobio do qual lá fora era proveniente prevalecia em residência silenciosa. Sacode, sacode a fina cortina de seda que fura os olhos de tanta beleza e encanta a pele de tanta maciez! Clamava então a pobre e patética alma que se envolvia com os detalhes minuciosos do cômodo. Na sua mente vagava os comentários sem nenhuma necessidade, que logo em seguida eram digeridos junto do pedaço de biscoito que levava a boca.

- E o que ele faz?

- É médico recém-formado.

Médico?! Como ela podia comparar com grandiosa profissão, se perguntou em meio à confusão gerada. Segurou firme a xícara de café e olhou firme nos olhos do general. Este estava distraído com o copo de café majestoso que vinha em sua direção, preparado especialmente pela governanta. Em sua diagonal fitou uma mão coberta. A luva branca cabia perfeitamente como os pés nas sapatilhas negras. Deixou escapar um sorriso ao observar outro em sua direção. Parou de se queixar por a formosura ter ocultado sua verdadeira profissão.

- Pretende lecionar ou atender?

Hipnotizado deixou de ficar após a criada entrar batendo o pé no chão emitindo um ruído de cavalo trotando. Recordou das épocas douradas no Jóquei Clube com seu pai. Aos poucos estendeu mais a lembrança ao momento crucial de sua história passada. O bater dos pés mais firmes o assustaram.

- Perdão, poderia repetir?

O senhor ajeitou os óculos e respirou fundo. Repetiu em tom mais autoritário. O jovem ficou sem palavras, sem pensamentos. Eis que sai de sua boca...

- Lecionar.

Como assim lecionar?! Um homem de tantas palavras preferindo tocar em cadáveres e mostrar cada órgão? Agora havia mergulhado na mentira. Ó, se não fossem as doces palavras e o encantador sorriso da sujeita tão próxima! Uma ilusão alimentava outra, que alimentava outra, e mais outra. Nada tinha certeza se seria um dia dono daquelas terras, daquele sorriso, de um bigode de respeito. Ah se queria um bigode estampando em sua face como também um belo bíceps que marcava no seu humilde terno azul não tão humilde assim! O máximo que possuía era uma barba adolescente, sem valor algum, sem masculinidade alguma. O fracasso por enquanto era o fator mais nítido.

- Biologia ou química?

- Biologia.

Não era grande apreciador das ciências naturais. Vibrava somente com o abrir de um botão de rosa ou com a polinização de uma flor, fato que fazia quando visitava sua já idosa tia nas montanhas. Mergulhado em profunda nostalgia lembrou-se de quando dormia embaixo de um cajueiro segurando seus rascunhos, que logo escapuliram de seus braços e se misturaram as folhas secas de outono. Nunca mais recordava o que havia escrito naquele outono passado.

- Mas me diga meu jovem, queres o que com minha pequena?

De pequena não no tamanho, mas talvez na idade. A diferença era de um mês, dois meses, talvez de um ano, não sabia. Anos, anos... Não gostava da palavra. Talvez porque se viu noivo por um ano e depois foi jogado aos abutres. Pelo povoado no qual morava, era considerado um verdadeiro fracassado. Fracassado, fracasso, fracassado... As palavras se debatiam na mente já confusa. A mentira poderia novamente o afundar. Segurou o ar e sorriu em um tom tímido. O momento foi quebrado pela governanta chamando-os ao grande salão. Apresentação das jovens herdeiras.

A fria ventania havia cessado ao decorrer da melodia que embalava os atentos ouvidos. O pai orgulhoso apertava as mãos junto às luvas brancas da sua joia rara. Mas que joia, pensava o jovem ao vasculhar em seu bolso em busca de um mero lápis. Mero objeto, mera pessoa. Era completamente pessimista. Nadava os prantos da epiderme enquanto aguardava o doce som da voz feminina de sua amada. Quando chegou o momento, se acomodou na cadeira luxuosa.

- “Deixou o legado nas rosas. Sussurros primaveris em vento longe vão levando os devaneios de quem ferido foi pelas ervas daninhas. Vagará vendado em busca do futuro enfim. Visão ausente por completo, mas presente no coração que pulsa com firmeza está a jovem semente que a apertura usava como cobertor. Eis que o tudo muda ao doce encanto do alvo pássaro que surge e o guia. Nada mais importava, mas tudo poderia estar perdido por um simples erro. Nada como cimentar as rachaduras que se encontram no tortuoso caminho da vida.’’

Aplausos explodiram em meio ao silêncio. Um aperto de suadas mãos fez acordar para a realidade o autor de pequena obra. Um sorriso do portador de coração de pedra abria horizontes ao se encontrar com a visão turva e cansada do rapaz. Tocou no bigode, ajeitando-o. Já se esperava as consequências.

- Não precisa de um diploma. Já sabe que tem a capacidade de dissecar palavras, ideias, contextos. És um gênio, saiba disso.

Pelo menos uma vitória na vida estava garantida. Agora era só conseguir que as demais mentes pulsantes aprovassem o enternecimento de suas palavras e que em seus braços a querida criatura permanecesse. Difícil era crer na concretização dos sonhos, mas a busca não podia ser interrompida. Nada custa tentar.